domingo, agosto 05, 2007
UNIVERSIDADE NOVA: idéia brilhante de Naomar ou fruto de um processo histórico? - Gabriela Medeiros
A sociedade brasileira mais uma vez se deslumbra e fica maravilhada ante mais um sucedâneo estilo “pílula milagrosa”, ou os antigos e satirizados “elixir maravilha” dos caixeiros viajantes presentes em inúmeras histórias da cultura popular. Dessa vez o que nos é proposto é uma nova estrutura curricular que irá de uma única vez resolver todos os problemas da universidade: acesso, qualidade, interdisciplinariedade e acesso ao mercado de trabalho. Vejamos a Universidade Nova com maior profundidade.
Em primeiro lugar o projeto não é novo: começou há cerca de vinte anos atrás simultaneamente na nascente União Européia e nos EUA. Um ciclo complexo de lutas sociais nos anos 60 e 70, tantos nos países ricos quanto nos explorados provocou no final dos anos 70 e início dos anos 80 uma profunda crise não apenas econômica, mas que se irradiou nos mais diversos níveis da sociedade. O capitalismo para se perpetuar percisou se reformular, reestruturar, reorganizar. A própria academia reconhece este fato em suas diversas matizes teórico-ideológicas: reestruturação produtiva, neoliberalismo, novas estruturas de governança mundiais, microeletrônica, novos movimentos sociais, globalização e muitos outros elementos surgiram ou ganharam força excepcional neste momento. Será que o ensino em geral e o ensino superior em particular ficariam imunes a isto?
Como entendemos que a Universidade não existe fora ou a parte da sociedade, mas é um dos elementos do conjunto de relações socioeconômicas mais gerais, obviamente esta também iniciou seu ciclo de transformações. Se toda a economia, o Estado, os conflitos sociais e o mercado de trabalho estavam em mudança efervescente, é a partir deste conjunto de mudanças fundamentais que devemos analisar a mudança da Universidade. Vejamos algumas categorias centrais:
a) Estado Mínimo e educação enquanto mercadoria:
Este ciclo maior de mudanças adaptativas do capitalismo levou a que o Estado que antes provia serviços básicos (saúde, educação, previdência, comunicações, etc) a transferir estas atividades econômicas para as empresas privadas, gerando novas oportunidades de rentabilidade para estas saírem da crise econômica. Ao mesmo tempo o próprio financiamento do Estado nos países explorados gradativamente saiu da taxação das atividades empresariais, e transferiu-se para os encargos salariais e consumo, além de captação de recursos no mercado financeiro. Ou seja: menos dinheiro para os setores essenciais, em especial saúde e educação. Só que ao mesmo tempo as pressões sociais por manter e ampliar estes serviços são enormes, logo os diversos governos começaram a buscar “pílulas milagrosas”, que sem ampliar o financiamento ampliasse o acesso. A contrapartida óbvia é a precarização e mercantilização. Vejamos isto no Universidade Nova.
Apesar de prometerem 20% a mais de recursos para as universidades que entrarem no modelo do B.I. (decreto o 6.096, de 24 de abril de 2007) sendo esta uma das propagandas mais fortes que tem sido colocadas na mídia, este mesmo decreto diz que as fontes de recursos continuam sendo exclusivamente as mesmas do Ministério da Educação, ou seja, se não há aumento do orçamento do Ministério da Educação, para poder ampliar em 20% o orçamento das universidades que aderirem ao modelo, necessariamente vai ter que tirar este dinheiro de outra parte do orçamento do MEC, prejudicando outras universidades federais ou outros níveis de ensino. Para completar, o orçamento do MEC tem diminuído progressivamente nos últimos seis anos.1
b) Sub-qualificação da força de trabalho e aumento do número de desempregados
Um segundo dado central da reformulação geral dos anos 80, tanto nos países ricos quanto nos países explorados, é que o aumento geral do nível de qualificação profissional dos trabalhadores permitiu um maior controle sobre o processo de trabalho. Com isso durante os conflitos sociais como as greves, os trabalhadores não apenas paravam as fábricas, mas em muitos casos faziam com que elas funcionassem sem os patrões, administradores e engenheiros, autogerindo complexos produtivos significativos. Ao mesmo tempo a microeletrônica começou a transferir atividades especificas antes realizadas pelos trabalhadores para sistemas computadorizados e robotizando parte das atividades manuais. Tornou-se imperativo desqualificar tecnicamente os trabalhadores ao mesmo tempo que os tornassem aptos a operar diversos equipamentos ao mesmo tempo ou rotinas técnico/administrativos de múltiplos setores.
Assim os empresários conseguiram fazer com que um trabalhador fizesse o trabalho de muitos, ampliando a produtividade e demitindo trabalhadores (reestruturação produtiva). Ao mesmo tempo reduziu a capacidade de controle sobre os processos de trabalho pois a formação do Bacharelado Interdisciplinar é generalista, ou seja, superficial em diversas áreas, de modo que o trabalhador opere em diversas áreas ao mesmo tempo mas sem conhecer profundamente nenhuma delas a ponto de controlá-las.
Um outro ganho para o capital do modelo de Bacharelado Interdisciplinar, base do Universidade Nova, é que as turmas contam com centenas de estudantes, em alguns países até 500. Isto ganha legitimidade junto a sociedade pois aumenta o número de vagas, as custas da precarização do ensino. O argumento da precarização é combatido com o uso de tecnologias pedagógicas inovadoras adequadas a turmas grandes, o que na prática significa ensino a distância, avaliações basicamente quantitativas e grande uso de monitores que acabaram de entrar no mestrado acadêmico (pouca experiência, qualificação e sob condições de trabalho precárias, vide nossos professores substitutos).
Formando agora quantidades massivas de bacharéis interdisciplinares ao mesmo tempo que reduz-se a oferta de vagas no mercado de trabalho via reestruturação produtiva, amplia-se brutalmente a concorrência entre os desempregados por uma vaga no mercado, facilitando o rebaixamento dos salários, retirada de direitos trabalhistas. Pode-se argumentar que hoje o desemprego já é um fato concreto e gritante, o que é verdade. Todavia o que existe hoje é uma grande massa de “inipregáveis”, ou seja, amplos setores da população que não tem qualificação mínima para concorrer a diversos cargos. Para estes cargos que exigem um nível de qualificação mínima a concorrência é bem menor. Agora o capital deseja ampliar os níveis de concorrência para estas áreas.
c) Processo autoritário, mas que busca legitimidade
Uma terceira característica decorrente das amplas mudanças dos anos 80, é que estas mudanças no geral ocorrem em contextos políticos pós-ditaduras, em especial na América Latina. Momento delicado, onde os conflitos sociais estão aguçados e movimentos sociais ativos. A estratégia geral é que as reformas estruturais conquistem legitimidade na sociedade em geral ao mesmo tempo que são autoritários e esmagam os setores críticos. Assim as reformas surgem como “demandas legítimas da população”, e não como estratégias de desenvolvimento do capital. Vejamos os fatos concretos e a seguir o discurso dos defensores da proposta.
Este modelo surge nos anos 80 nos EUA e melhor sistematizado na União Européia. Segundo os próprios proponentes claramente vinculados as necessidades de desenvolvimento do capitalismo. No início dos anos 90 é adotado como política central de organizações internacionais, notadamente o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, condicionando empréstimos e projetos aos países explorados a reformas estruturais, sendo que para o ensino superior o modelo do Bacharelado Interdisciplinar concomitante a redução do orçamento público para a educação são uma constante em todos os convênios, projetos e relatórios.
O avanço do neoliberalismo no Brasil a partir do governo Fernando Henrique oficialmente se coaduna com esta linha hegemônica, vide o apoio público do B.M. e F.M.I. as políticas educacionais de FHC, o congelamento do financiamento público e expansão desenfreada do setor privado. Deste esta época setores dentro do próprio MEC e alguns setores dos próprios professores defendiam a inserção da Universidade Pública brasileira nos marcos do modelo de ensino europeu.
Mais recentemente o governo Lula segue nesta agenda, sendo que o Ministério da Educação abre diversas “universidades tecnológicas” seguindo o modelo do Bacharelado Interdisciplinar, propõe um projeto de lei (PL7200/06) que incentiva os B.I. em três anos, reduz o orçamento da educação e aprova uma série de medidas (PROUNI, Inovação Tecnológica, PPP, etc...) que tem sérias críticas dentro da comunidade acadêmica em geral.
No final de 2006 o reitor da UFBA surge como uma proposta de atualizar a UFBA para a modernidade, a partir de sua inserção no modelo da União Européia. Imediatamente é seriamente criticado por manter o vício histórico do colonizado, pensando soluções para o nosso país a partir da cópia de modelos hegemônicos. Ainda assim ao invés de dialogar com as universidades parte para uma agressiva campanha na mídia local, publicando artigos em jornais, realizando palestras, conferências, comparecendo a programas de televisão, etc. Após dois meses de campanha pública angariando legitimidade na sociedade em geral e por inúmeras pressões da comunidade acadêmica apresenta formalmente a proposta ao Conselho Superior Universitário, e em seguida apresenta a proposta nas diversas unidades de ensino.
Veja bem, apresenta e não debate. As reuniões duravam em média 4h de duração com o Reitor falando por 3:30. Nenhum fórum democrático apoiou a proposta, no máximo alguns espaços deliberaram por continuar o debate com mais reuniões e outros foram francamente críticos. Daí o Reitor retornou a sua campanha de mídia, mas agora adaptando o discurso, pois a proposta não era mais uma inserção no modelo europeu, e sim um resgate de Anísio Teixeira (e o conteúdo continuou o mesmo). Além disso, a comunidade acadêmica da UFBA deixou de ser uma parceira do projeto, e passou a ser caracterizada publicamente como setor corporativo e francamente hostil a mudanças. Inúmeras palestras, entrevistas, artigos, reuniões nacionais foram realizadas sem a mínima participação da comunidade acadêmica ou movimentos sociais, todavia, reitores, grupos de professores que declaradamente apóiam as políticas neoliberais e setores empresariais lotam todos os espaços decisórios.
Após “ganhar legitmidade”, a manobra seguinte foi implementar o projeto nacionalmente via decreto (decreto o 6.096, de 24 de abril de 2007), deixando a cada universidade a obrigação de apenas regulamentar como isto vai acontecer.
A guisa de conclusão, a universidade nova não tem absolutamente nada de novo. É apenas a união entre a fração mais avançada da burocracia acadêmica que se beneficia com o estreitamento de relações da Universidade com o Mercado, o governo necessitando de legitimidade para continuidade de suas políticas neoliberais e a população brasileira que mais uma vez aparenta aceitar passivamente outro “elixir milagroso”.
1 Fonte: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/contabilidade_governamental/execucao_orcamentaria_do_GF/MDE.xls Acessado 30/07/06
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